Em meados da década de 1980, dois primos viveram uma aventura que ainda hoje permanece viva na memória. Em 1984, decidiram preparar um carro e inscrever-se no Campeonato de Iniciados de Ralis de 1985, num projeto que nasceu de uma paixão partilhada e da vontade de experimentar o mundo da competição automóvel.
O carro, um Toyota Starlet 1300, foi adquirido pelo primo mais entusiasta, um verdadeiro apaixonado pelos ralis. “Ele vivia aquilo intensamente”, recorda António Cabral Campelo. “Tinha autógrafos de pilotos dos anos 60, 70 e 80, acompanhava os treinos, sabia tudo. Era o sonho dele ter um carro de competição.”
O acordo era simples: os custos seriam divididos entre os dois, com o apoio dos patrocinadores que conseguissem reunir. “Fizemos aquele ano, e depois logo se veria”, explica Cabral Campelo. O projeto foi, desde o início, pensado para durar apenas uma época, mas deixou marcas profundas em ambos.
Completaram-se 40 anos, no final do passado mês de outubro, desde que esse jovem de 23 anos, natural de Baião e residente na Casa de Penaventosa, então freguesia de Campelo, hoje Campelo e Ovil, decidiu enfrentar o Campeonato de Ralis Iniciados de 1985. Descobriu que jeito e temperamento para acelerar não lhe faltavam, embora esse “pé um pouco pesado” lhe tenha valido uma ou outra reprimenda do primo navegador. Apesar de inscrito em quatro ralis, apenas participou em três, devido a motivos de saúde do seu copiloto no Rali da Serra de Sintra.
Na altura, as provas deste campeonato distribuíam-se por várias regiões do país, como aliás o próprio nome da competição deixava antever.
No último rali em que participou, o Rali de Abrantes, a equipa foi totalmente baionense: o piloto António Cabral Campelo escolheu Amadeu Freixo, também ele baionense para navegador, sendo o seu batismo nestas andanças automobilísticas “Deu muito boa conta do recado”, recorda Campelo. Mesmo com alguns contratempos pelo caminho, alcançaram um honroso décimo lugar.
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Seguidamente, revelamos aos nossos leitores a agradável conversa que mantivemos com Cabral Campelo, a quem agradecemos a disponibilidade e simpatia, e que nos revelou retalhos de um período marcante da sua vida. Agradecemos igualmente a Amadeu Freixo a sua presença na entrevista, relembrando juntos as memórias inesquecíveis por que passaram.
“Os ralis ensinaram-me a conhecer os meus limites e, acima de tudo, a importância de conduzir com prudência no dia-a-dia.”
Comércio de Baião (CB) – Como surgiu a ideia de participar no Campeonato de Ralis Iniciados de 1985?
António Cabral Campelo (CC) – No final de 1984, aceitei o desafio de um primo meu, cerca de quinze anos mais velho do que eu, mas igualmente apaixonado pelos ralis. Decidimos que iríamos participar no Campeonato de Ralis Iniciados do ano seguinte, se não completo, pelo menos em algumas provas.
CB – Como foi o processo de preparação para essa aventura?
CC – Foram meses de grande entusiasmo. Primeiro tratámos da aquisição do carro. A escolha recaiu sobre um pequeno Toyota Starlet, que tinha pertencido ao departamento de competição da Salvador Caetano, portanto já muito bem preparado. Depois veio a fase da procura de patrocinadores, uma tarefa difícil, mas com final feliz: conseguimos o apoio de quem acreditou no projeto e nos ajudou financeiramente.
CB – E quanto à decoração do carro, também teve um papel especial aí, certo?
CC – Sim! A decoração foi uma das partes mais empolgantes. Trabalhámos eu e os meus amigos de Baião, na pequena oficina do Sr. Dias, em longos serões a preparar o Starlet conforme o combinado com os patrocinadores. Quero deixar aqui uma palavra especial para o Carlos Guedes, o principal responsável pela decoração e um grande amigo que, infelizmente, já não está entre nós.
“A preparação do carro foi quase tão emocionante quanto correr. Eram noites inteiras na oficina, entre tinta, risos e sonhos.”
CB – Quais foram as provas em que participou no campeonato?
CC – O campeonato começou em outubro de 1985. Inscrevi-me em quatro ralis, mas acabei por fazer apenas três: o Rali de Ponte de Lima, o Rali de Évora e o Rali de Abrantes. Por motivos de saúde do meu primo, que era o meu navegador, não pude participar no Rali Sintrense, o que foi uma pena, pois tínhamos treinado afincadamente nas classificativas da Serra de Sintra.
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CB – Que memórias guarda da estreia, no Rali de Ponte de Lima?
CC – As horas que antecederam a prova foram de enorme nervosismo. Não sabia se tinha realmente jeito para estar ao volante num ambiente competitivo. Lembro-me bem das palavras do meu pai, que não ligava nada a automóveis: “Tem juízo, mas aplica-te para não te envergonhares do que fazes”. O rali começou e, com a minha inexperiência, cometi alguns erros. O pior foi um “tete”, um pião de 360º, numa especial de 21 km, o que deitou por terra qualquer hipótese de um bom resultado.
CB – O Rali de Évora foi o seu melhor desempenho, não foi?
CC – Exatamente. Nesse rali tive ao meu lado um navegador muito experiente, que soube equilibrar o meu ímpeto e ajudar-me a manter um ritmo forte e constante. Nas duras classificativas de terra, o pequeno Starlet de 1.3cc foi impecável. Entre uma vintena de carros mais potentes, consegui os sextos tempos em todas as classificativas e terminei num honroso quarto lugar da geral. Foi um resultado muito saboroso!
“O Rali de Évora foi a prova em que percebi que tinha realmente capacidade para andar depressa, mas com cabeça.”
CB – E como foi o último rali, em Abrantes?
CC – Em Abrantes a equipa foi totalmente baionense. O meu navegador foi o Amadeu Freixo, que, com muita coragem, aceitou o desafio de se estrear. O rali tinha uma etapa diurna e outra noturna, e foi muito difícil, não tanto pelo percurso, mas pelas condições. As estradas de terra eram ladeadas por eucaliptos e a poeira levantada pelos carros dificultava imenso a visibilidade. Durante o dia cometi alguns exageros e despistei-me duas vezes, danificando o carro. Mas à noite, já sem pressão, concentrámo-nos e conseguimos melhorar os tempos da etapa anterior — creio que fomos dos poucos a fazê-lo. Foi o nosso pequeno prémio de consolação.
CB – Que lições tirou dessa experiência?
CC – Foi um período marcante na minha vida, que me ensinou muito, não só sobre condução, mas sobre responsabilidade e autodomínio. Sei que é uma fantasia, mas seria muito útil se todos os jovens passassem por uma experiência destas. Os ralis ensinam-nos a lidar com o imprevisto, a conhecer os nossos limites e, acima de tudo, a importância de conduzir com prudência. Nas estradas do dia-a-dia não estamos sozinhos, temos de estar atentos não só aos nossos erros, mas também aos dos outros. São estas as principais recordações de um período que marcou a minha vida e que me deixou grandes ensinamentos.
A finalizar, questionamos Cabral Campelo acerca de não ter dado continuidade ao percurso atrás descrito:
“Eu queria continuar, mas comecei a ter outras responsabilidades. Tinha um namoro sério, planos de casamento e precisava de juntar dinheiro”, recorda o antigo piloto, que na altura trabalhava na Poligrupo e “ganhava muito bem, até mais do que a irmã, que era médica”.
Enquanto ele se afastava das corridas, o primo manteve o sonho vivo. “Ainda fez alguns ralis do Campeonato Nacional e chegou a participar no Rali de Portugal”, conta Cabral Campelo. “Não era rápido, mas conduzia com um prazer enorme. Aquilo enchia-lhe a alma.”
O tempo, porém, acabaria por interromper a história. O primo viria a falecer aos 54 anos. “Morreu cedo demais. Foi ele que deu o impulso a tudo isto”, lamenta Cabral Campelo.
O Toyota Starlet também seguiu outro destino: foi vendido ao piloto José Rodrigues, de Murça, conhecido pelas provas de autocross. “Tenho dúvidas se chegou a usá-lo nessa modalidade”, diz. “Anos mais tarde, o meu filho encontrou uma fotografia do carro num rali regional. Fiquei comovido. Se tivesse ido para o autocross, já não existiria.”
Hoje, o antigo piloto fala do carro com saudade e admiração: “Era um carro pequeno, mas fantástico,1.300 de cilindrada, 110 cavalos, suspensão robusta, direção direta, caixa close. Dava um gozo enorme de conduzir”.
Apesar da distância no tempo, o sentimento permanece:
“Tenho muita pena de não ter ficado com o carro. Outros valores se levantaram, mas ficou a tristeza de não ter conseguido continuar aquele sonho”, concluiu.