2025/11/14
Nas terras altas do concelho de Gouveia, envolvendo São Paio e as aldeias vizinhas de Aldeias, Paços, Ribeiro e Várzea, subsiste uma tradição que revela a força de uma comunidade resistente e profundamente ligada à Serra da Estrela. Aqui, a água que chega às casas não depende de empresas concessionárias. Vem diretamente das nascentes da serra, conduzida por canalizações construídas pelos próprios habitantes ao longo de décadas e mantidas pela união das freguesias.
Estas populações, herdeiras das lendárias terras de Viriato, habituaram-se a resolver por si aquilo que o Estado raramente lhes ofereceu. Quando o abastecimento público não chegava, juntaram-se, abriram valas, carregaram tubos às costas pela serra acima, desviaram levadas antigas e ergueram depósitos comunitários. Construíram um sistema sólido, fiável e inteiramente comunitário, legado de várias gerações que souberam viver entre o granito, a altitude e o rigor do inverno.

Com o avanço das empresas municipais e semi-privadas de distribuição de água, surgiram tentativas de integrar estas freguesias nos sistemas concessionados. Mas esta gente serrana mantém-se firme na defesa daquilo que construiu. Recusa pagar faturas a entidades externas que não contribuíram para erguer um único metro das suas canalizações. Prefere continuar o gesto simbólico e identitário de pagar a sua contribuição à Junta de Freguesia, guardiã legítima das nascentes e da manutenção do sistema comunitário.
Estas freguesias veem neste costume algo muito maior do que uma taxa. É uma afirmação de autonomia, de continuidade e de respeito por uma herança construída pelos antepassados. Cada tubo colocado, cada nascente preservada, cada reparação feita em conjunto é um testemunho vivo de uma comunidade combativa que não abdica do que conquistou a pulso.
Uma curiosidade pouco conhecida destas aldeias do concelho de Gouveia é que, até meados do século XX, a distribuição da água era tão preciosamente organizada que existia uma figura comunitária chamada o "aguadeiro da serra", responsável por verificar diariamente o fluxo das nascentes, limpar as caixas de água e avisar a população em caso de geada, rutura ou obstrução. Em alguns lugares, estas funções ainda são desempenhadas de forma informal por voluntários locais que continuam a velar por um sistema que sentem como seu.
Nestas terras serranas, a água continua a descer pelos caminhos que o povo abriu. Cada gota carrega consigo a memória de uma luta silenciosa mas firme, e de uma resistência que atravessou gerações. E enquanto assim for, estas populações continuarão a afirmar que a água que bebem é da serra e também é delas, e que a sua fatura, como sempre, se paga na Junta, símbolo de uma autonomia que o tempo não conseguiu destruir.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor